Tudo
começou provavelmente numa festa, talvez amigos em comum tenham apresentando o
futuro casal. Ele tomava cerveja, uma, duas, três. Ela também bebia, mas fumava
muito. Charme e vício se misturavam. Ele se apaixonou pelo cabelo enrolado
dela. Aquilo ficou marcado e ela o cultivava com esmero. O cabelo, mas também o
amor. Não queria perder as forças para não se tornar vítima do mito de Sansão.
Juntos viajaram, compartilharam festas, festas e mais festas. Sempre regadas a
cervejas e cigarros. Ele quis mostrar todo o mundo dele para ela. E a recíproca
se fez verdadeira e igual.
Noites
ao som de violão, pôr-do-sol no Farol da Barra, vasito em Buenos Aires, costela
assada em algum bar do Rio de Janeiro. Ela olhava tudo admirada, feliz por ter
encontrado tanta beleza e conhecimento em um mesmo homem. Da parte dela,
restava mostrar para ele a cidade que era dela e que ele tinha tomado por sua. E
ele foi. Se deixou levar por um novo linguajar, por novos códigos e apreciava
tudo isso porque, sobretudo, estava fascinado por ela. Demasiadamente. Até o
ciúme parecia gracioso aos olhos dele. Logo ele que tanto prezava a liberdade.
Em
um terça-feira ensolarada em São Paulo ele se cansou de tudo isso. Cansou dos
ciúmes exagerados. Cansou da falta de autonomia dela. Cansou do cotidiano
dividindo a mesma cama, o mesmo lençol bordado pelo gozo. Queria uma vida
pautada por horas mais leves, como ousara dizer uma vez para uma outra moça que
ele deixara a “ver navios”. E hoje ele repetia isso para a mesma moça que ainda
estava a “ver navios”. Durante o almoço, entre um pastel de entrada e um suco
de saída, eles tentavam compreender em quê ele tinha se tornado. Ele queria se
reinventar, caso contrário, enlouqueceria. A moça dos navios queria admirá-lo
como da primeira vez. Como das outras vezes. Queria aquele jeito debochado e
carinhoso dele. Queria a cumplicidade de antes. E no meio desses pensamentos o
celular sempre tocava. E o toque era sempre: ela, ela, ela, ela! Ele não
atendia, desconversava, colocava no silencioso.
Naquele
dia, a outra percebeu que ele nunca mais seria dela. Mas ela queria ver de
perto o obscuro objeto do desejo dele. Viajou, viajou e viajou. Chegou num
lugar quente, seco e cheio de mistérios. Ela foi em busca de uma explicação
para tudo aquilo, uma explicação para uma história que não era sua. Mas ela
foi. Entre cervejas e cantorias, a curiosidade se transformou em pena. Todos
diziam o quanto era feio sentir isso pelas pessoas, mas também disseram o
quanto ela não devia ter ido ver a nudez alheia. Mas ela viu. E saiu atordoada
correndo com seus sapatos de Alice para um lugar menos hostil, onde o sol
queimasse menos. Onde carros antigos não fizessem parte do cenário.
Voltar
ao local do desacerto não era fácil, mas necessário. Pensou que encontraria o
desejo personificado em mulher, mas encontrou apenas músicas que falavam de
solidão, músicas que doíam. Encontrou também passantes que discutiam filosofia,
sexo e outras trivialidades. Ele estava cansado e ansioso, era notável. Entre
uma cerveja e outra lá pelas tantas da madrugada, ele foi logo dizendo o quanto
não sabia sair daquela relação já finda. Não era amor, era loucura, dizia ele
tentando denotar uma inexistente serenidade. Contrariando a música que diz
“dói, um tapinha não dói”, nele doía. Doía porque ele sabia que ela também não
sabia fugir daquilo.
***
Para
a moça dos infindáveis navios, a volta para casa não foi menos difícil. Ora,
ela sempre prometia que agora sim ela se livraria daquele encosto. Ele que
apanhasse uma vez por dia, ele que ficasse naquela vida medíocre e, finalmente,
ele que pagasse o preço de não saber apreciar a moça que vive escondida no
próprio desejo. Mas ele não sabia de nada disso. Ou pelo menos ela suspeitava. Ou
suspeita. Isso já não tem mais tanta importância, ela acredita. “Tudo não
passou de ilusão”, como diz a música. E agora que ela recobrou os sentidos
talvez seja a hora de encará-lo para se reencontrar novamente com as próprias
vontades, desejos e sentidos.